segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Por que continuarmos pobres e dependentes, mais de duzentos anos depois de Tiradentes?

Paracatu, 16 de dezembro de 2007

Por que continuarmos pobres e dependentes, mais de duzentos anos depois de Tiradentes?

Os custos sócio-ambientais do projeto de expansão III da RPM/Kinross em Paracatu são maiores que os benefícios previstos. Para viabilizá-lo, serão necessárias medidas reparatórias e compensatórias estimadas em bilhões de reais

Sergio Ulhoa Dani (*)

Em um de seus memoráveis discursos, Tancredo Neves, líder político da redemocratização do Brasil, evocou Tiradentes, aquele herói enlouquecido pela liberdade: “Se todos quisermos, faremos do Brasil uma grande nação!”

Decorridos 215 anos do enforcamento do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, seu brado continua atual. A situação da cidade histórica de Paracatu que, curiosamente, tem a mesma população da Vila Rica setecentista, lembra o cenário da vida do mártir da nossa independência.

O que tem cabido a Paracatu e ao Brasil com a exploração do ouro feita pela transnacional Kinross, controladora da Rio Paracatu Mineração, são míseros 1% do faturamento líquido da empresa, um polêmico investimento externo da ordem de 5% do valor da reserva de ouro da mina do Morro do Ouro e um passivo sócio-ambiental que custará bilhões de reais para várias gerações de paracatuenses e brasileiros, comprometendo suas possibilidades de desenvolvimento e sua soberania.

O lucro é deles e o problema é nosso?

As reservas de ouro de Paracatu, anunciadas pela RPM/Kinross compreendem 15 milhões de onças, ou 467 toneladas (1 onça = 31,1035 g). Pela cotação atual do metal precioso na bolsa de Nova Iorque, estas reservas estão avaliadas em US$12 bilhões, ou cerca de 21 bilhões de reais. Com a atual política tributária, a legislação de compensação financeira e as práticas e costumes vigentes, somente uma parcela irrisória desta riqueza ficará no Brasil e na comunidade de Paracatu, o que não parece justo nem compatível com os danos ambientais com os quais as gerações atuais e futuras terão que conviver, e as necessidades de alavancar um desenvolvimento qualitativo da sociedade. Como observa Sergio Clemens, “por uma questão de justiça e eqüidade, a compensação de um dano tem de estar relacionada com a extensão deste; do contrário, não se poderá falar nem mesmo em reparação, pois não se terá conseguido reconquistar o equilíbrio perdido, ou suplantar o abalo causado”.

Reparações e compensações sócio-ambientais devem ser feitas utilizando parte do resultado econômico e financeiro da mineração, do contrário a atividade torna-se, por definição, insustentável. A compensação pode ser feita mediante o pagamento de impostos, porém a reparação somente pode ser feita por meio de medidas específicas indicadas pela sociedade que sofre os impactos sócio-ambientais.

Quando se avalia a contribuição da RPM/Kinross sobre a arrecadação de impostos do município de Paracatu, tomando por base o ano de 2006, constata-se que a mesma não ultrapassa os 10% (Gráficos 1 e 2). Ou seja, uma contribuição ínfima e insuficiente para neutralizar os enormes problemas sócio-ambientais causados pela mineração a curto, médio e longo prazos, avaliados em bilhões de reais pela Fundação Acangaú, de Paracatu. A geração de empregos também é insuficiente. Impostos e empregos não passam para as gerações futuras, mas o dano sócio-ambiental persiste por várias gerações.


A maior arrecadação do município, respondendo por 34% da arrecadação em 2006, é proveniente do repasse de ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) pelos governos estadual e federal. O valor do repasse é calculado em função do VAF – Valor Agregado Fiscal, uma medida do movimento econômico, i.e., a diferença entre as saídas e as entradas de uma empresa ou do conjunto das empresas que atuam no município. O VAF estabelece o índice usado para calcular o valor do repasse de ICMS e IPI para o município. O produto da RPM/Kinross é ouro, considerado ativo financeiro e como tal, isento de ICMS e IPI. O ouro é exportado para diversos países, especialmente Inglaterra e Estados Unidos, com benefícios fiscais. Apesar das exportações não serem tributadas, seu valor entra no cálculo do VAF do município de Paracatu. Então o retorno de ICMS e IPI para Paracatu é maior do que as receitas de ICMS e IPI geradas dentro do próprio município. Isto significa que a atividade da RPM/Kinross em Paracatu não contribui para gerar ICMS e IPI, mas acaba “sugando” essas receitas de outras regiões do estado e do país.

A segunda maior fonte de arrecadação do município de Paracatu (respondendo por 21% da arrecadação em 2006) é o FPM – Fundo de Participação dos Municípios. Os valores repassados ao município pelo FPM são função do IPI, do IR (Imposto de Renda) e de um fator populacional. A influência da RPM/Kinross sobre o valor do FPM repassado para o município de Paracatu foi estimada, nesse levantamento, em torno de 15%, o que representou 3% da arrecadação total do município em 2006.

A terceira maior fonte de arrecadação do município de Paracatu é o ISS-Imposto Sobre Serviços, que respondeu por apenas 5% da arrecadação do município em 2006, o que invalida qualquer alegação de que empresas prestadoras de serviço da RPM/Kinross contribuam significativamente pela RPM/Kinross nesta rubrica. Pelo contrário, existem evidências de perda de receitas previdenciárias e de seguros decorrentes da contratação, pela RPM/Kinross, de empresas prestadoras de serviços. Uma vez que a empresa é co-obrigada com suas contratadas, ela não poderia gozar da isenção de retenções de diversos impostos federais, em contratos fixos feitos com empresas optantes pelo simples nas áreas de construção civil e contratos de homem-hora, por exemplo.

A contribuição direta mais significativa da RPM/Kinross para os cofres públicos é oriunda do pagamento da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), equivalente ao Imposto de Operações Financeiras (IOF), fixado em 1% sobre o faturamento líquido da empresa. Em 2006, a RPM/Kinross pagou aos cofres públicos – união, estado e município – um total de R$2.255.697,31 pela exploração de ouro e prata em Paracatu. Desse total, foram pagos R$1.466.203,25 para o município de Paracatu, o que representou apenas 2% da arrecadação total (Gráficos 3 e 4).

A receita da CFEM é auto-declarada pela RPM/Kinross e é aceita desta forma pelo município, pelo estado e pela união, sem qualquer fiscalização ou questionamento. Entretanto, há os que questionam até mesmo a constitucionalidade da CFEM, em cuja apuração se confundem os conceitos de “resultado” e “faturamento líquido”. Como aponta Sergio Clemens, “relacionadas as categorias "resultado" e "faturamento líquido", tem-se que o resultado é sempre menor que o faturamento líquido, eis que este, contrariamente àquele, não leva em conta todas as despesas indispensáveis à produção e comercialização de determinado bem; já o resultado reflete aquilo que efetivamente resultou da atividade empresarial: receitas e despesas, e não somente receitas”.


Empregos x Desempregos

Empresas mineradoras preferem utilizar o mínimo de mão-de-obra e o máximo de equipamentos sofisticados, para obter elevados lucros. Apenas um caminhão fora-de-estrada utilizado para transporte de minério pela RPM/Kinross chega a custar mais de 3 milhões de reais. Um caminhão destes transporta até 240 toneladas de minério a cada viagem, e ele pode fazer mais de 20 viagens num turno de 8 horas de trabalho na mina. Em suas minas espalhadas pelo mundo, a Kinross emprega apenas 4.700 pessoas e fatura bilhões de dólares. Empresas como esta são concentradoras de renda.

Em Paracatu, a maioria dos cerca de 600 empregados efetivos da RPM/Kinross recebe dois salários-mínimos ou menos; 10% têm nível de escolaridade básica ou incompleta, 5% têm nível secundário incompleto e 59% têm nível secundário. Cerca de 14% têm nível superior incompleto e apenas 11% dos funcionários têm nível superior completo e a maioria destes não é originária de Paracatu. No ápice do projeto de expansão, o número de empregos efetivos pode chegar a 720. A empresa utiliza ainda os serviços de 861 terceirizados.

A título de comparação, em 2006 a RPM/Kinross faturou 227,8 milhões de reais, o que equivale a 3,3 vezes o valor arrecadado pela prefeitura municipal de Paracatu. No mesmo período, a RPM/Kinross empregou cerca de 600 pessoas, contra os 2.400 funcionários da prefeitura de Paracatu. Ou seja, em 2006 a RPM/Kinross faturou 3,3 vezes mais que a prefeitura, porém empregou 4 vezes menos que a prefeitura. O fator de distribuição de renda da RPM/Kinross foi 13 vezes menor que o da prefeitura de Paracatu (2400*800/68,9)/(600*800/227,8) = 13.

Além disso, as centenas de famílias que moravam nas áreas hoje ocupadas pela lagoa de rejeitos, nas áreas de lavra e nas áreas adjacentes à lavra foram desalojadas, desempregadas e marginalizadas pela RPM/Kinross. Eram garimpeiros, caçadores-coletores, lavadeiras e agricultores que foram desempregados das suas atividades pela RPM/Kinross e hoje constituem uma população marginalizada. Estima-se em milhares o número de pessoas desempregadas e marginalizadas.

No balanço geral, a empresa desemprega mais do que emprega. Seus investimentos estão destruindo as comunidades que têm uma história de crescimento sustentável e padrões equilibrados de distribuição do trabalho e que, apesar de pobres, eram capazes de garantir a sobrevivência humana e o equilíbrio ambiental ao longo do tempo.

Nossas riquezas naturais – águas, terras, minerais, plantas e animais – e também o nosso trabalho e a nossa criatividade não são desdobradas e aplicadas de forma a criar uma sociedade justa e virtuosa; ao contrário, nossas riquezas são exploradas de forma a dar o máximo lucro possível aos exploradores.

Interesses econômico-financeiros x Perpetuidade da vida

Uma grande empresa pode sugar uma pequena cidade e até uma região inteira, de tal forma a torná-la dependente do seu sucesso empresarial. Os investimentos são planejados por especialistas da grande empresa e por sua alta direção, que moram a centenas de quilômetros daqui, e estão mais interessados em um desenvolvimento quantitativo, e menos interessados em um desenvolvimento qualitativo, e pouca importância dão à população local ou às condições ambientais.

Entretanto, e diferentemente da época do Brasil-colônia, hoje dispomos de uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo, algo com que Tiradentes e Tancredo Neves talvez nem tivessem sonhado. A Constituição Federal (CF) assegura a defesa do cidadão e do meio ambiente contra o domínio e as arbitrariedades do poder econômico.

Para obter lucros com a exploração do ouro em Paracatu, a RPM/Kinross pretende aumentar o volume de minério de arsenopirita sulfetada extraído e triturado, dos atuais 17 milhões de toneladas/ano para 61 milhões de toneladas/ano, causando emissão de substâncias tóxicas para a atmosfera e a contaminação dos solos e das águas. Até o presente momento, a RPM já lançou cerca de 300 milhões de toneladas de rejeito em sua lagoa de decantação. O projeto de expansão prevê o soerguimento de uma segunda e imensa barragem, no vale do Machadinho. A destruição compromete milhares de hectares de morros, vales e nascentes, e atinge o perímetro urbano.

As pretensões da RPM/Kinross em Paracatu desnaturam a função social, rompem o equilíbrio ecológico e atentam contra a inviolabilidade da vida. A atividade econômica "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:" (Art. 170 da CF) e devendo ter função social (Art. 170 inciso III da CF), não só deve exercer essa função como deve respeito a outras propriedades que estejam cumprindo sua função social.

Não existe conflito possível entre a função social derivada da atividade econômica e a função social originária dos elementos da natureza; antes, deve existir complementaridade, não se justificando, então, que a segurança hídrica, a saúde e a sustentabilidade econômica e cultural sejam postas em risco por um projeto tendente a criar uma situação irreversível, vez que contempla supressão de elementos naturais e contaminação ambiental irremediável.

Armas, germes e aço

Nos best sellers "Armas, Germes e Aço" e “Colapso: Por que Algumas Civilizações têm Sucesso e Outras Não?”, Jared Diamond, cientista norte-americano vencedor do prêmio Pullitzer apresenta relatos de como foram dizimadas as civilizações autóctones nas Americas do Sul e Central e prossegue na discussão de outros fatores, a destruição ambiental e as decisões erradas de sociedades na utilização de seus recursos naturais, como elementos importantes para sucesso ou queda de civilizações. Os títulos são auto-explanatórios. É possível que algum paracatuense sobrevivesse para narrar a saga do que foi e como teria acabado Paracatú depois da invasão da RPM/Kinross, cujas armas modernas são as potentes escavadoras, tratores, caminhões fora-de-estrada e explosivos, onde os germes vêm na versão do arsênio e do cianeto, que matam sem serem vistos, e o aço é substituido pelo ouro. Nós não vamos permitir que isto aconteça, que a História se repita com os mesmos erros porque restamos impotentes face à corrupção e a ignorância, que são os vetores desta vergonha.

Derrama neles!

Há que cumprir a Constituição Federal, uma conquista da sociedade brasileira, obtida à custa do nosso suor e do nosso sangue.

Na época do Brasil-colônia, a prática da cobrança de impostos atrasados era chamada de derrama. A derrama visava cumprir as metas de remessa de ouro para a metrópole, independente da real produção de ouro na colônia. Como o quinto não era pago integralmente e os valores não pagos eram acumulativos, a cobrança era intensificada, confiscando-se bens e objetos de ouro.

A nova derrama no Brasil moderno será assim: fazer a RPM/Kinross cumprir a Constituição Federal, independente das leis infra-constitucionais, como o Código de Mineração, e apesar da ação dos lobistas, dos ignorantes e dos traidores da pátria. Como as compensações e reparações sócio-ambientais ainda não foram feitas integralmente pela empresa, a cobrança será intensificada, caçando-se, se for preciso, o direito de lavra dessa transnacional.

Não faz sentido termos tanta riqueza natural e autorizarmos sua exploração, se a sua apropriação por estrangeiros remunera tão mal a comunidade local, por tão pouco tempo, e a um custo tão alto.

_______________________

(*) Médico, cientista e empresário, presidente da Fundação Acangaú e membro da Academia de Letras do Noroeste de Minas. E-mail: sergio.dani@terra.com.br. O autor agradece as valiosas críticas e sugestões do Dr. Paulo Maurício Serrano Neves e Cylene Dantas da Gama.

2 comentários:

  1. Olá Serrano Neves!
    Encontrei o seu blog por acaso pelo google.. Adorei.. só tem um probleminha, no título do blog. PARACATU não tem acento!!!! tira esse acento por favor!

    ResponderExcluir
  2. Prezado Senhor Serrano Neves,

    Paracatuense, 41 anos vivendo em Brasília, fico feliz ao descobrir que existem pessoas altamente qualificadas mobilizadas em defesa da nossa cidade, barbaramente agredida e espoliada pela sanha insaciável do OURO! Ah! O OURO!!!
    Pior, tudo isso nas barbas dos centros do poder em Brasília.
    Não faz muito tempo, um documentário do canal Discovery mostrou como a população de uma ilha da Indonésia, de organização social quase primitiva, conseguiu através da mobilização do povo , expulsar do seu território a mal-fadada Rio Tinto Zinc (inglesa?), sem que esta tenha conseguido ao menos iniciar a exploração para valer, pois as máquinas que chegavam eram destruídas em de atos de sabotagem contínua.
    Curioso, pessoas consideradas aborígenes demonstraram desenvolvida consciência ambiental e elevado senso de patriotismo e civismo ao defenderem com unhas e dentes seu patrimônio maior que é a natureza em equilíbrio. Já no Brasil... Bom, antes tarde do que nunca...
    Sabemos que a anterioremente citada Rio Tinto Zinc é a antecessora, até há poucos dias, da canadense Kinross na exploração do ouro do nosso Morro do Ouro.
    Essa Kinross só vai expandir o dano ambiental, de proporções dantescas, deixado pela Rio Tinto.
    O dano ambiental é irreparável e talvez não exista nenhuma outra área do planeta tão absurda e irremediavelemente agredida quanto o Morro do Ouro.
    Não acho que Minas seja um retrato na parede. Paracatu muito menos...
    Paracatu vive e precisa sobre-tudo-viver!
    Disponho-me a colaborar naquilo que estiver ao meu alcance, para ajudar a salvar o que ainda resta da nossa memorável Paracatu do Príncipe.

    Silvano da Silva Pereira
    Arquiteto - CREA 3224/D-DF
    silvano@unb.br

    ResponderExcluir

Aguardamos seu comentário.